Na dependência de drogas, o processo de adoecimento do dependente caminha junto com o adoecimento da sua família. O fenômeno mais conhecido que descreve essa parte familiar da doença é a codependência, cujos portadores apresentam algumas características assustadoramente parecidas com as do dependente. Eis algumas das “coincidências”:
Tolerância
É comum ouvir de usuários que, depois de um tempo, eles não conseguem mais ter as sensações que tiveram nas primeiras vezes de uso. O organismo vai se acostumando aos efeitos da droga e o usuário precisa de cada vez maior quantidade de droga para obter o mesmo efeito. Esse fenômeno é chamado tolerância. É a adaptação do corpo à droga. É a partir da tolerância do sujeito que a doença vai se instalando.
A família também desenvolve tolerância. Quando os pais descobrem que o filho usa drogas a reação é a mais intensa possível. Desespero, raiva, angústia, negação. No entanto, é comum o relato de famílias que, após algum tempo, nem falam mais nada ao encontrar maconha nas coisas do filho, por exemplo. A família vai se acostumando ao comportamento dele. Precisam de fatos cada vez mais graves para terem a mesma reação. É a adaptação da família ao filho usuário. É a partir da crescente tolerância familiar que a doença ganha o espaço que precisa para firmar suas bases na família.
Se o usuário não desenvolve tolerância, não há dependência. O mesmo vale para a família.
Negação
“Não é meu, estava guardando para um amigo”, “eu paro a hora que eu quiser”, “não tem problema, é natural” são exemplos de frases representativas da negação característica do usuário inicial de drogas.
Quando a coisa está um pouco mais grave, isso se transforma em “não preciso me internar, prometo que paro” ou “só estou usando por causa desses problemas que estão acontecendo, mas não é nada grave”.
E quando ele já está internado, antes mesmo de chegar no meio do tratamento vai dizer “agora já estou bom, posso voltar à minha vida normal” ou “não preciso mais tomar medicação, já estou melhor”. Negação. Negação da doença, negação dos problemas causados pelas drogas, negação da dura realidade que criou para si mesmo.
O mesmo sintoma assola a família. Quando a escola chama os pais e diz que suspeita que seu filho esteja usando drogas, eles dizem “meu filho não mente para mim, vou perguntar para ele”, o filho diz que não usa e os pais ainda brigam com a escola. Ou quando os pais dizem “meu filho nunca faria uma coisa dessas, é mentira”.
Depois que a situação agrava, o profissional orienta internamento e os pais dizem “acho que não precisa internar, vamos tentar atendimento psicológico antes” ou “vamos dar uma última chance para ele parar antes de interná-lo”, procrastinando o tratamento através da negação.
Quando está internado, “meu filho já está melhor, vou tirá-lo desta clínica fria em que estão prendendo ele” ou “vamos fazer um churrasco nesse fim de semana da sua socialização com uma cervejinha para que ele não se sinta um doente”.
A negação impede que usuário e família enfrentem o problema tal qual se apresenta. Enquanto há negação, não há solução.
A droga como prioridade crescente
Conforme o jovem começa a usar drogas, ele vai parando de se relacionar com os amigos que não usam e começa a andar apenas com usuários. Conforme agrava o uso, seu círculo de amigos e atividades sociais passam a girar completamente em torno da droga. Ele gradativamente se afasta das coisas positivas da sua vida e a droga vai assumindo o centro dela. Conversas, programas sociais, pensamentos, preocupações passam a ser todos relacionados à droga. A droga se torna, então, a sua única prioridade.
A família também passa por algo parecido. Conforme o filho aumenta o uso, os pais vão abrindo mão das suas atividades particulares, dos seus projetos individuais, dos seus programas sociais, da sua vida conjugal, para “cuidar” do filho. Os pais vão gradativamente se afastando das suas próprias prioridades e o filho vai assumindo o centro da vida deles. Conversas, pensamentos e preocupações estão todos relacionados ao filho e ao seu uso de drogas. O filho passa a ser sua única prioridade.
Se o centro da vida da família é o dependente e o centro da vida do dependente é a droga, qual é, em última análise, o verdadeiro centro da vida da família?
O desafio tanto do dependente quanto da família é destituir a droga dessa posição central. E o processo é longo e árduo.
Manipulação
A manipulação é um sintoma típico da dependência de drogas. Quanto mais grave está o quadro do sujeito, mais manipulador ele fica. Justifica, seduz, chantageia, chora, agride, entre outros comportamentos para conseguir que os outros lhe satisfaçam as vontades e adiem uma eventual tomada de atitude para interromper seu uso.
Curiosamente, não é raro atendermos famílias tão manipuladoras quanto o dependente. Emocionam-se, agradecem o profissional, dizem que o atendimento mudou a vida deles, mas encontram desculpas para interromper o tratamento antes mesmo de qualquer ação concreta, distorcem o que os profissionais falam para fazerem do jeito que acham melhor, se apegam em detalhes para desacreditar tudo o que foi dito nos atendimentos. Tudo para adiar a mudança e a tomada de atitude necessária frente ao problema. Boicotam o próprio objetivo que dizem buscar.
O tratamento exige que a família não entre na manipulação do dependente e que os profissionais não entrem na manipulação da família. A manipulação de ambos é estratégia da doença para defender seu espaço e conquistar mais território. É preciso minar essa estratégia.
Falta de escuta
Outro sintoma central do uso de drogas é a falta de escuta. Não é por acaso que não adianta, e nunca adiantou, dar sermão nos filhos para que parem de usar droga ou explicar para o dependente os danos que ele está causando para ele mesmo e para a família.
É sempre importante repetir para os pais que “o dependente de drogas não escuta palavras, ele escuta ações”.
Mas tem que repetir bastante, pois os pais do dependente, em um primeiro momento, também não escutam nada do que é dito para eles.
Às vezes dão ao profissional a sensação de falar com uma parede. A cabeça deles está tão centrada no filho quanto a cabeça do filho está centrada na droga. A repetição de conceitos importantes se faz necessária. Faz parte do processo.
Chega um momento do tratamento que os dependentes relatam terem escutado pela primeira vez aquilo que é repetido para eles desde o dia em que pisaram na clínica. Com a família não é muito diferente. Chega um momento que parece que escutam pela primeira vez aquilo que é dito desde o primeiro atendimento.
Nesse momento começam as mudanças.
Crise de abstinência
Quando se tira a droga do dependente, ele sofre a chamada crise de abstinência – um desconforto insuportável relacionado à falta que o organismo sente da droga. Essa crise deve ser controlada, na medida do possível, através de medicação, que é um dos papéis do psiquiatra participante do tratamento.
A família também sofre uma crise de abstinência do filho quando ele é internado. Um desconforto inexplicável, mesmo que as coisas aparentem mais calmas. É a falta que a família sente do dependente. Já estava muito acostumada com o convívio disfuncional. Afinal, todos abriram mão de parte das suas vidas para se preocupar com ele.
Assim como o dependente quer a droga para eliminar o desconforto da abstinência, a família quer o dependente de novo para voltar ao “normal”. A crise do dependente se controla com medicação. Mas como controlar a crise da família, para que os pais não boicotem o tratamento numa tentativa (in)consciente de ter o dependente de volta?
Conhecimento sobre todo o mecanismo da dependência de drogas e a retomada gradual do relacionamento conjugal e dos projetos individuais dos pais. Um dos grandes objetivos dos atendimentos familiares.
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