Vou de táxi, motorista da rodada, se beber não dirija, lei seca. Por que as estratégias contra álcool e direção são todas tolerância zero? Qual o problema de dirigir tendo bebido apenas uma taça de vinho ou uma cerveja? A lei não é um pouco exagerada?
Frente a essas perguntas, pode ser que muitos considerem a lei um exagero, sim. Talvez a considerem um exagero necessário, por culpa “dos que não sabem seu limite, ao contrário de mim, e causam acidentes depois de beber” e, então, “todos pagam o pato por esses poucos”.
Acredito que esses pensamentos passem pela cabeça daqueles que, considerando-se ‘responsáveis’, não veem problema em voltar para casa dirigindo após algumas cervejinhas, desde que tomem mais cuidado na direção.
Dá para entender a razão dessa postura. Realmente é diferente um sujeito tomar 8 doses de vodca e sair dirigindo loucamente e outro tomar duas cervejas e andar com seu carro a 40km/h rumo à sua casa. Onde está o problema, então?
Gostaria de compartilhar 3 razões que podem levar alguém a beber e dirigir e que podem nos fazer ver a coisa toda desde outra perspectiva:
1) A CULTURA DO “NÃO DÁ NADA”
É possível que, sem perceber, estejamos inseridos e reproduzindo a mesma cultura do não dá nada que é o maior obstáculo para o trabalho de prevenção em qualquer área, seja no trânsito, sexual ou de drogas. Afinal de contas, qual é a diferença entre o sujeito que fala que “maconha não dá nada” e o que fala que “dirigir depois de umas cervejinhas não dá nada”? Pior ainda é o que tem conhecimento, mas acredita que “comigo não vai dar nada”.
Isso me lembra um conceito da Física, que pode ser estendido para fenômenos sociais: as chamadas transições de fase. Por mais que você aumente a temperatura de um bloco de gelo a -20º, não vai acontecer nada até que sua temperatura cruze a linha dos 0º e, subitamente, comece a derreter.
Um exemplo desse conceito em outros âmbitos é a história do peru, que ao ser preso dentro de um cercado concluiu que ali poderia ficar tranquilo, certo de que estava seguro, afinal de contas, tinha alguém que lhe alimentava todos os dias e que afugentava eventuais predadores que se aproximavam. Não havia com o que se preocupar. Com base em sua experiência, ele concluiu que “não dava nada” ficar por ali mesmo. E dia após dia ele passou tranquilo e seguro naquelas condições, certo de que não ia dar nada, afinal de contas, tudo estava sob o mais perfeito controle até então. Até que chegou o Natal – a sua linha dos 0º – e, sem que ele entendesse o porquê, colocaram-lhe no forno. Aí já era tarde demais para começar a se preocupar.
Nós, seres humanos, às vezes, temos uma semelhança incrível com os perus. Vamos de “não dá nada” em “não dá nada” até ser tarde demais. O sujeito fuma um baseado e nada de ruim lhe acontece. Fuma novamente e a mesma coisa. Conclusão: fumar maconha não dá nada. Outro toma umas cervejas com os amigos e volta dirigindo para casa para não gastar com táxi. Nenhum acidente, nenhum imprevisto e ele chega são e salvo. Fim de semana seguinte, mesma coisa. Conclusão: não dá nada dirigir depois de beber uma(s) cervejinha(s).
Será que precisamos passar pela experiência para entender que algumas coisas não vão agravando aos poucos, mas passam direto do “não dá nada” para o “não tem mais volta”? E nunca sabemos quando isso poderá ocorrer. O peru não sabe o que é e nem quando é o Natal.
2) A ILUSÃO DE SUPERIORIDADE
Um choque acontece quando descobrimos que não somos superiores à maioria das pessoas. A propósito, a maioria das pessoas se acha superior à maioria das pessoas. Portanto, se pensamos assim, estamos no mesmo nível da maioria. Um exemplo são as pesquisas de trânsito que mostram que 70% dos motoristas acham que dirigem acima da média (é matematicamente complicado 70% estar acima da média, não?).
Praticamente todos os motoristas bêbados se julgam aptos para dirigir. Todos que causaram acidentes achavam que com eles isso não ocorreria. Todos sabiam dos acidentes causados por álcool e direção, mas pensavam que era por que os “acidentados” não dirigiam tão bem quanto eles.
É também uma questão cerebral. O álcool inibe o funcionamento do córtex pré-frontal, que é o responsável pela nossa capacidade de julgamento. Portanto, sob o efeito do álcool, não sabemos avaliar se devemos ou não enviar aquela mensagem para a ex ou se podemos gastar mais uma rodada sem estourar o orçamento. Portanto, também não somos capazes de dizer acertadamente se temos ou não condição de dirigir. Se você tem a sorte de ter um amigo que fala que você não deveria dirigir quando bebe, leve-o sempre junto com você e acredite nele quando ele fala isso!
Como todos têm um cérebro com as mesmas características e que é afetado da mesma maneira pela presença do álcool, não se iluda ao pensar que com você é diferente.
Uma famosa casa noturna no sudeste da Ásia, considerando tudo isso, encontrou uma forma criativa e eficaz de persuadir seus clientes a não dirigirem depois de beber. Vale a pena ver essa.
3) A FALTA DE LIMITES PARA O EGOCENTRISMO HUMANO
Outro choque é perceber o quão egocêntricos somos, incapazes de nos mobilizar pela possibilidade de causar sofrimento a outras pessoas. Se não sofremos nós mesmos na carne, é difícil empatizar com uma situação que só foi vivida/sofrida pelo outro.
Este sujeito traduz perfeitamente em palavras a conduta de muitos que, apesar de não se expressarem dessa forma, agem assim.
Ver alguns relatos de pessoas que sofreram na pele as consequências da mistura de álcool e direção, nos ajuda a perceber ao que estamos nos dispondo a gerar quando dirigimos sob o efeito do álcool. Este é um dos relatos apresentados no documentário Direção Incerta: uma discussão sobre embriaguez no trânsito.
Ver e ouvir fatos como esse nos levam a pensar que faríamos qualquer coisa para nem sequer correr o risco de causar esse tipo de sofrimento. Qualquer coisa, até mesmo abrir mão de dirigir quando passamos da conta na bebida sem planejar. Pelo menos é o que deveria acontecer. Se não acontece, é fruto do egocentrismo sem limites que acomete algumas / muitas pessoas.
Existe uma alternativa se eu quiser sair de carro e beber?
Pode ser que você não queira pegar um táxi, que não haja transporte coletivo no horário que pretende voltar e que nenhum amigo esteja disposto a não beber e levá-lo para casa depois. E você quer tomar uma cerveja ou uma taça de vinho esta noite. Nesse caso, existe sim uma alternativa. Claro, sempre existe uma alternativa.
O importante é que seu corpo/cérebro não esteja sob efeito de álcool quando for dirigir. E isso é matemática, não percepção. Calcule (chutando para cima) que seu corpo leva em torno de 1h30 para eliminar o álcool de uma lata de cerveja ou de uma taça de vinho. Portanto, após uma lata, é 1h30 tomando água ou refri. Após duas latas, 3h na água ou refri e assim por diante. Respeitado esse período, seu cérebro estará livre de álcool para pegar na direção. Se quiser sair de carro e beber, essa é a única opção segura – dar o tempo necessário para o corpo eliminar o álcool. Saiba mais sobre o álcool no organismo.
Mudar o próprio comportamento de não dirigir sob o efeito de álcool é importante. Mas dá para fazer ainda mais ao se posicionar para que seus amigos também não façam isso. Afinal, é pelo bem deles. Com certeza, eles não querem ter problemas com a lei e nem correr o risco de serem os responsáveis pelo sofrimento de outras pessoas. Talvez eles só não tenham pensado suficientemente no assunto ainda.
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