Desde quando comecei a trabalhar com prevenção ao uso de drogas conversava com meu grande amigo e colega Marco Afornali sobre a dificuldade de atingir o jovem e fazê-lo sentir o que realmente significava se envolver com drogas.
Uma das possibilidades que discutíamos era criar uma peça de teatro que transmitisse às crianças e adolescentes esse significado. Uma peça em que o jovem pudesse vivenciar, como observador e sem sofrer as consequências, o drama familiar e pessoal de alguém que vai buscar nas drogas a fuga para uma realidade sentida como insuportável, seja ela externa ou interna.
Mas isso era um ideal inalcançável. A criatividade inesgotável do Marco até deu origem a muitos contos e a um livro para crianças com potencial de se tornar uma peça, mas nunca tivemos os meios nem os contatos para concretizar esse ideal.
Um sonho que ficou na esfera dos sonhos e foi aos poucos sendo relegado a um segundo ou terceiro plano nas nossas ocupações.
Até que semana passada fui convidado por um colégio para participar de uma mesa-redonda após uma peça teatral que seria apresentada aos pais e alunos sobre drogas.
Fiquei muito entusiasmado com a proposta, mas um pouco apreensivo sobre a qualidade do que assistiria, afinal de contas, sei que não é fácil escrever um roteiro que não vá pelo moralismo, que não exagere ao extremo os fatos sobre as drogas e que tampouco minimize o problema das drogas.
Preocupações infundadas. A peça, intitulada “AINDA”, com a direção de Marcos Caruso e com um elenco de tirar o chapéu, me surpreendeu de uma forma inexpressável. Foi como ver aquele sonho sobre a prevenção ao uso de drogas concretizado. Uma peça teatral que leva o espectador ao mais íntimo do drama pessoal e familiar do uso de drogas, que faz sentir o que tem por trás daquele estereótipo “descolado” do usuário e que mostra a dificuldade de um pai de enxergar o seu papel nos problemas de relacionamento com o filho.
A peça, em apenas uma hora, consegue concentrar uma quantidade de conhecimento incrível. Cada detalhe do enredo traduz a completa realidade do uso de drogas e contém conhecimentos fundamentais sobre as dependências químicas. A negação do pai que o impedia de ver que seu filho estava usando drogas, a codependência dele que dava condições para que seu filho seguisse adoecendo, a regressão da idade mental do filho, que estacionou na adolescência, a importância de alguém de fora ajudando a família a enxergar o problema e a lidar com ele da forma adequada, representado na peça pelo tio e, normalmente, representado na realidade por um profissional capacitado na área.
Enfim, a peça foi tão incrível, com um roteiro e atuação tão irretocáveis, que não havia chances de a discussão da qual participei após a peça chegar próximo à beleza e à profundidade representadas por ela. Mas como o nosso cérebro não está preparado para assimilar a percepção de tanto conhecimento condensado, ele precisa de argumentos e explicações racionais para se satisfazer.
Espero que as discussões após a peça tenham pelo menos atendido a essa necessidade.
Como é bom ver materializado um sonho que parecia irrealizável.
Parabenizo e agradeço o trabalho desse grupo (que não deve ter sido pouco) para concretizar este espetáculo. A todos que tiverem a oportunidade de estar em um lugar em que essa peça seja apresentada, sugiro que não percam “AINDA”!
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